segunda-feira, setembro 22

Livros, livros, livros...

As pessoas da minha geração têm, geralmente, uma tentação de conservar as coisas. Ou antes, têm dificuldade de se desfazerem das coisas. A Psicologia pode explicar os fundamentos para esta atitude com relativa facilidade, mas como sempre um pouco em contra-corrente, ando com uma vontade louca de arranjar coragem de me desfazer de mil miudezas, acumuladas em duas casas, ainda por cima. Dar, ninguém quer receber. Uma vez já fiz um leilão, tudo a um euro, e lá despachei umas coisas, mas havia uma motivação que levava as pessoas a comprar: a quantia apurada, devidamente registada, era para ser entregue numa obra em Moçambique.
Este preâmbulo serve apenas para eu expor um problema: o que tenho mais de meu, realmente meu, são livros. E não consigo arranjar coragem para me desfazer deles! Vejo-me aflita para resistir à tentação de comprar mais, o que é praticamente impossível, e depois não sei onde os hei-de pôr.
Bem, mas esta conversa de livros traz agarrada a si uma das coisas mais bonitas de que tive conhecimento como Professora. Não aconteceu comigo, mas garanto a verdade dos factos.
Numa escola dos arredores, durante a experiência da gestão flexível do currículo, o Presidente do Conselho Executivo conseguiu uma adesão extraordinária de toda a comunidade escolar para mudar algumas coisas: não havia campainha, os docentes planificavam em conjunto e quando um tinha necessidade de faltar avisava outro que estivesse livre (tinham os contactos e os horários uns dos outros) e os alunos estavam sempre acompanhados.
Por outro lado, sendo uma zona em que havia algum policiamento mais visível, alguns agentes colaboraram com o pedido feito de "acordarem" alguns alunos que não tinham quem os acordasse. Mas numa de serviço cívico e não de autoridade.
Outra particularidade que eu verifiquei foi a de que os pais eram chamados e recebiam uma espécie de "lições": o seu menino (!) precisava de tempo para brincar, portanto, nada de o obrigar a ir a correr buscar a avó ao centro de dia, ou levar-lhe o remédio, ou ir buscar o irmão à ama... Não é que não fosse bom ele fazer isso, mas tinha o direito a ser criança nem que fosse meia-hora. Além disso, precisava de um lugar para estudar - nem que fosse a mesa da cozinha - e precisava de um lugar certo para pôr os livros... Aí, houve uma gargalhada quase geral: "Lugar para pôr os livros? Quer que a gente compre uma estante, não? Ainda mais essa!"
Mas, pacientemente, se explicou que com dois tijolos e umas caixas de madeira de supermercado se fazia uma prateleira. Ele, Professor, quando se casara, tinha sido assim que resolvera o problema porque o dinheiro não abundava...
Bem, para encurtar a história, vamos ao importante: apesar dos cuidados, havia um aluno que estava quase a reprovar por faltas e como a montanha não ia a Maomé, foi Maomé à montanha: a directora de turma resolveu ir a casa do faltante e, chegando lá, encontrou o seu aluno à bulha com um vizinho e as mães já a começarem a puxar o cabelo uma à outra. A Professora tossiu (é uma maneira muito inteligente de chamar a atenção de alguém...) e a mãe do aluno apartou-se da outra e gritou para o filho. "Oh Jorge, olha a tua Professora; anda-te embora qu'isso é gente que nem livros em casa tem!"
Que belo diploma aquela mãe passou àquela Escola!

3 comentários:

henrique santos disse...

Carmo, para mim, desfazer-me de livros é suprema heresia. E quase nunca dei nenhum livro que não tivesse também e não tivesse gostado de ler. Em relação a alguns livros que foram claramente erros de casting que cometi, não os dou a ninguém: o que não serve para mim julgo que não é bom também para os outros.

IC disse...

Eu também tenho o problema das mil coisas acumuladas em casa ao longo de anos e anos, e também suspeito que é uma atitude de geração pois invejo as casas práticas das minhas filhas, onde o que já não é usado é despejado (excepto livros). Uma vez li alguém que tinha como regra: o que não é usado durante um ou dois anos, não será mais usado (e é quase sempre verdade), portanto é de dar ou deitar fora, e assim, de longe em longe, lá faço um despejo a eito, evitando olhar bem porque às vezes são recordações, ou dossiês que significam a história de muito trabalho, mas penso que a vida a olhar é a do presente, não a do passado, e pronto, lá faço "limpeza".
Mas livros? Não, isso não! Eles podem estar nas estantes em duas filas, mais numas prateleiras junto ao tecto (deixo a sugestão, não ocupam espaço necessário para móveis, etc), mais numas pilhas no chão em lugar discreto, mais em torre que arrisca cair-me na cabeça enquanto durmo - não me caiu na cabeça, mas ainda há dias fez a mesa de cabeceira desconjuntar-se e partir-se lol), mas os livros não são meros objectos, são companhias como que vivas. E eu sei que não os vou reler porque raramente releio um livro (a não ser que seja de estudo/consulta), e já não me lembro do conteúdo da grande maioria, no entanto são companhias conhecidas, não consigo reconstituir ou relatar o conteúdo mas sei o que de essencial me dizem ou disseram, não me lembro e ao mesmo tempo são-me muito familiares. Em suma, se tivesse que mudar para uma casa pequenina em que só o muito indispensável coubesse, das duas, uma: ou os poderia levar todos mesmo que para os pôr nas tais caixas de supermercado empilhadas com tijolos nem que fosse até ao tecto por falta de outro espaço, ou iria sentir-me imensamente sozinha. Eles não fazem só parte da minha casa, eles fazem parte de mim e do que sou, mesmo muitos dos que li ainda adolescente.

Ai... acho que os dedos nas teclas me levaram a confidências, melhor dizendo, não são confidências - não só para a minha e da Carmo mas para outras gerações o sentimento é o mesmo para muitas e muitas pessoas, o que não sei é se continua a ser assim para os jovens de hoje. No meu tempo de menina não só eu mas muitos outros, em vésperas de férias, já antecipávamos em pensamento o primeiro dia de férias para o prazer de o passar a ler sem obrigações a cumprir (e no tempo das minhas filhas meninas também isso acontecia), mas com as tantas outras solicitações actuais, isso é agora bem menos frequente. Se essas outras solicitações e ocupações do tempo livre substituem bem o que a leitura, o prazer e o hábito desde cedo de ler deram a tantos de nós, isso já não sei dizer.

AnaCristina disse...

Para uma ilha deserta, eu levaria livros e musica... o resto descobria depois!