domingo, novembro 18

O verbo anestesia a carne…

“Um dia eu falava para um auditório, atentos ele e eu, em um palanque de conferência. Súbito, uma vespa me picou no lado interno da coxa, a surpresa somou-se à dor aguda. Nada na voz ou na entonação denunciou o acidente, e o discurso foi concluído. Esta recordação exata não pretende alardear uma coragem espartana, mas indicar apenas que o corpo falante, a carne plena de linguagem não tem muita dificuldade em continuar na palavra, aconteça o que acontecer. O verbo ocupa e anestesia a carne, até disseram, escreveram que ele se fazia carne. Nada insensibiliza mais a carne do que a palavra. Se eu estivesse olhando alguma imagem, ouvindo o som saído do positivo, cheirando uma grinalda de flores, provando um confeito, segurando um bastão com a mão fechada, o aguilhão da vespa ter-me-ia arrancado gritos. Mas eu falava, em equilíbrio dentro de um sulco ou de um claustro, no interior da couraça discursiva. Querem drogar profundamente um paciente? Levem-no a falar com paixão e ênfase, peçam-lhe que fale dele, só dele, só do desejo dele. Ei-lo intoxicado de palavras sonoras, a vespa já não pode com nele. Falamos para nos drogar, militantes como egotistas.”


Serres, Michel (2001). Os cinco sentidos – Filosofia dos corpos misturados. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

8 comentários:

Cristina Gomes da Silva disse...

...às vezes sem tempo para pensar, ou sentir o aguilhão da vespa, não é?

Miguel Pinto disse...

É verdade Cristina :( Ontem, a comunicação social apresentava os resultados de um estudo comparativo, realizado no espaço europeu, [não importa aqui aferir a validade do mesmo] que analisava o tempo que os pais dedicam às brincadeiras com os filhos [crianças e pré-adolescentes, presumo eu]. Não valorizo excessivamente o lugar que os pais portugueses ocupam nesse ranking europeu. O que me aflige é não ser o dono do meu tempo; de não ser capaz de mandar o verbo às malvas só para ter o prazer de sentir o aguilhão da vespa.

Cristina Gomes da Silva disse...

Há nas tuas palavras uma certa nostalgia de um tempo que não existe. Ou será que ainda não existe? Saber o que é supérfluo e reduzi-lo a quase nada. Será que sabemos?

Miguel Pinto disse...

O problema é que esse tempo existe, Cristina. E dói só de saber que não me posso dar ao luxo de desperdiçar algo que é irrecuperável: o tempo vivido com aqueles que nos tornam especiais... :) Quando paro para pensar nestas coisas, ou melhor, quando tomo as rédeas do meu tempo, tudo se clarifica ;)

Anónimo disse...

Hum... Isso de "Falamos para nos drogar, militantes como egotistas" dá muito pano para filosofar!
Mas como ando em fase de evitar novelos emaranhados na minha cabeça... abstenho-me eh eh eh

Teresa Martinho Marques disse...

E eu... já meia zonza de tanta palavra escrita, misturada com a falada, de tanto tempo gasto, misturado com tempo vivido... de ser picada e mais vezes não gritar que gritar, salta-me o olhar para o título, decido não usar mais da palavra hoje e começar a sonhar com uma certa filosofia dos corpos misturados. Que querem? Isto da solidão tem as suas consequências. E vem aí um fim-de-semana em que farei como o Miguel diz: vou tomar as rédeas do meu tempo... por boas razões. Depois... depois... na segunda logo vejo.

Miguel Pinto disse...

:) Já somos dois, Teresa.

Paideia disse...

Vai em frente, 3za, que o tempo esgueira-se-nos, líquido entre os dedos.
Amanhã se verá...
:)